quarta-feira, 7 de março de 2012

A libras e a sua importância no processo de alfabetização em língua portuguesa


Considerando o ensino da língua portuguesa escrita para crianças surdas, há dois recursos muito importantes a serem usados em sala de aula: o relato de estórias e a produção de literatura infantil em sinais. O relato de estórias inclui a produção espontânea das crianças e a do professor, bem como, a produção de estórias existentes; portanto, de literatura infantil.
A comunidade surda tem como característica a produção de estórias espontâneas,bem como de contos e piadas que passam de geração em geração relatadas por contadores de estórias em encontros informais, normalmente, em associações de surdos. Infelizmente, nunca houve preocupação de registrar tais contos. Pensando em alfabetização, tal material é fundamental para esse processo se estabelecer, pois aprender a ler os sinais, dará subsídios às crianças para
aprender a ler as palavras escritas na língua portuguesa.
A produção de contadores de estórias naturais, de estórias espontâneas e de contos que passam de geração em geração são exemplos de literatura em sinais que precisam fazer parte do processo de alfabetização de crianças surdas.
A produção em sinais artistíca não obteve a atenção merecida na educação de surdos, uma vez que a própria língua de sinais não é a língua usada nas salas de aula pelos professores. Desta forma, estão se reproduzindo iletrados em sinais.A língua brasileira de sinais é “a” primeira língua e merece receber esse tratamento.Sendo assim, recuperar a produção literária da comunidade surda é um aspecto emergente para tornar eficaz o processo de alfabetização. Literatura em sinais é essencial para tal processo. Os bancos escolares devem se preocupar
com tal produção, bem como incentivar seu desenvolvimento e registro. O que os alunos produzem hoje espontaneamente, pode se transformar em fonte de inspiração literária dos alunos de amanhã. O que os professores relatam hoje, podem ser aperfeiçoado no dia de amanhã.

Parte-se do pressuposto que as crianças estejam tendo acesso a língua de sinais brasileira.
As línguas no contexto da educação de surdos. Os alunos surdos precisam tornar-se leitores na
língua de sinais para se tornarem leitores na língua portuguesa.

A língua de sinais é uma língua espacial-visual e existem muitas formas criativas de explora-la. Configurações de mão, movimentos, expressões faciais gramaticais, localizações, movimentos do corpo, espaço de sinalização, classificadores são alguns dos recursos discursivos que tal língua oferece para serem explorados durante o desenvolvimento da criança surda e que devem ser explorados para um processo de alfabetização com êxito. Algumas investigações realizadas em escolas bilíngües americanas têm evidenciado a importância de explorar tais aspectos observando o nível de desenvolvimento da criança. Os relatos de estórias e a produção literária, bem como a interação espontânea da criança com outras crianças e adultos por meio da língua de sinais devem incluir os aspectos que fazem parte desse sistema lingüístico. A seguir, estão listados alguns dos aspectos que precisam ser explorados no processo educacional:

􀁺estabelecimento do olhar
􀁺exploração das configurações de mãos
􀁺exploração dos movimentos dos sinais (movimentos internos e externos,ou seja, movimentos do próprio sinal e movimentos de relações gramaticais no espaço)
􀁺utilização de sinais com uma mão, duas mãos com movimentos simétricos, duas mãos com movimentos não simétricos, duas mãos com diferentes configurações de mãos
􀁺uso de expressões não manuais gramaticalizadas (interrogativas, topicalização, focus e negação)
􀁺exploração das diferentes funções do apontar
􀁺utilização de classificadores com configurações de mãos apropriadas (incluem todas as relações descritivas e preposicionais estabelecidas através de classificadores, bem como, as formas de objetos, pessoas e ações e relações entre eles, tais como, ao lado de, em cima de, contra, em baixo de, em, dentro de, fora de, atrás de, em frente de, etc.)
􀁺exploração das mudanças de perspectivas na produção de sinais
􀁺exploração do alfabeto manual
􀁺estabelecimento de relações temporais através de marcação de tempo e de advérbios temporais (futuro, passado, no presente, ontem, semana passada, mês passado, ano passado, antes, hoje, agora, depois, amanhã, na semana que vem, no próximo mês, etc.)
􀁺exploração da orientação da mão
􀁺especificação do tipo de ação, duração, intensidade e repetição (adjetivação, aspecto e marcação de plural)
􀁺jogos de perguntas e respostas observando o uso dos itens lexicais e expressões não manuais correspondentes
􀁺utilização de “feedback” (sinais manuais e não-manuais específicos de confirmação e negação, tais como, o sinal CERTO-CERTO, o sinal NÃO, os movimentos de cabeça afirmando ou negando)
􀁺exploração de relações gramaticais mais complexas (relações de comparação, tais como, isto e aquilo, isto ou aquilo, este melhor do que este, aquele melhor do que este, este igual àquele, este com aquele; relações de condição, tais como, se isto então aquilo; relações de simultaneadade,por exemplo, enquanto isto acontece, aquilo está acontecendo; relações de subordinação, como por exemplo, o fulano pensa que esta fazendo tal coisa; aquele que tem isso, está fazendo aquilo)
􀁺estabelecimento de referentes presentes e não presentes no discurso,bem como, o uso de pronominais para retomada de tais referentes de forma consistente
􀁺exploração da produção artística em sinais usando todos os recursos sintáticos, morfológicos, fonológicos e semânticos próprios da LSB (tais recursos incluem, por exemplo os aspectos mencionados até então).

A proposta é de tornar rica e lúdica a exploração de tais aspectos da língua de sinais que tornam tal língua um sistema lingüístico complexo. As crianças precisam dominar tais relações para explorar toda a capacidade criativa que pode ser expressa por meio da sua língua e tornar possível o amadurecimento da capacidade lógica cognitiva para aprender uma segunda língua. Através da língua, as crianças discutem e pensam sobre o mundo. Elas estabelecem relações
e organizam o pensamento. As estórias e a literatura são meios de explorar tais aspectos e tornar acessível à criança todos os recursos possíveis de serem explorados. As relações cognitivas que são fundamentais para o desenvolvimento escolar estão diretamente relacionadas à capacidade da criança em organizar suas idéias e pensamentos por meio de uma língua na interação com os demais colegas e adultos. O processo de alfabetização vai sendo delineado com base
neste processo de descoberta da própria língua e de relações expressadas por
meio da língua.
A riqueza de informação se torna fundamental. A interação passa a apresentar qualidade e quantidade que tornam o processo educacional rico e complexo. A alfabetização passa, então, a ter valor real para a criança. Algumas formas de produção artísticas em língua de sinais podem ser incentivadas para a utilização de todos os recursos, tais como:

􀁺produção de estórias utilizando configurações de mãos específicas, por exemplo, as configurações de mãos mais comuns utilizadas na língua; as configurações de mãos do alfabeto; as configurações de mãos dos números

􀁺produção de estórias na primeira pessoa
􀁺produção de estórias sobre pessoas surdas
􀁺produção de estórias sobre pessoas ouvintes

O processo de alfabetização continua por meio do registro das produções das crianças. As formas de registros iniciais são essencialmente visuais e precisam refletir a complexidade da língua de sinais. Explorar a produção de vídeos de produções literárias de adultos, bem como das próprias produções das crianças, é uma das formas de garantir um registro da produção em sinais com qualidade. A filmagem de adultos produzindo estórias, bem como dos próprios
alunos são instrumentos valiosos no processo de reflexão sobre a língua, além, é claro, de serem instrumentos que as crianças curtem. No entanto, uma forma escrita da língua de sinais torna-se emergente para a continuidade do processo de alfabetização. O sistema escrito de sinais expressa as configurações de mãos, os movimentos, as direções, a orientação das mãos, as expressões faciais associados ao sinais, bem como relações gramaticais que são impossíveis de
serem captados através de sistemas de escrita alfabéticos. Tal sistema tende a sistematizar a língua de sinais, assim como qualquer outro sistema de escrita,o que faz parte do processo.O sistema escrito de sinais é uma porta que se abre no processo de alfabetização de crianças surdas que dominam a língua de sinais utilizada no país. Este sistema envolve a composição das unidades mínimas de significado da língua compondo estruturas em forma de texto.
A criança surda que está passando por um processo de alfabetização imersa nas relações cognitivas estabelecidas por meio da língua de sinais para organização do pensamento, terá mais elementos para passar a registrar as relações de significação que estabelece com o mundo. Diante da experiência com o sistema de escrita que se relaciona com a língua em uso, a criança passa a criar hipóteses e a se alfabetizar. Experiência com o sistema de escrita significa ler esta escrita.
Leitura é uma das chaves do processo de alfabetização. Ler sinais é fundamental para que o processo se constitua. Obviamente que este processo de leitura deve estar imerso em objectivos pedagógicos claros no desenvolvimento das atividades. Estes são alguns dos objetivos a serem trabalhados pelo professor (em sinais):

􀁺desenvolver o uso de estratégias específicas para resolução de problemas
􀁺exercitar o uso de jogos de inferência
􀁺trabalhar com associações
􀁺desenvolver as habilidades de discriminação visual
􀁺explorar a comunicação espontânea
􀁺ampliar constantemente vocabulário
􀁺oferecer constantemente literatura impressa na escrita em sinais
􀁺proporcionar atividades para envolver a criança no processo de alfabetização

Como autora do próprio processo A escrita alfabética não capta as relações de significação da língua de sinais. Na verdade, ela vai expressar significados que serão organizados pela criança de outra forma. Considera-se importantíssimo a criança surda interagir com a escrita alfabética para o seu processo de alfabetização em português acontecer de forma eficiente. No entanto, é preciso alertar aqui que esse processo ocorreria de forma mais eficaz se a criança fosse alfabetizada na sua própria língua (Cummins, 2000).
A realidade em nosso país não é essa, ainda a criança surda brasileira deve “pular” o rio de um lado para o outro sem ter uma ponte. Assim, a criança vai ser alfabetizada na língua portuguesa sem ter sido “alfabetizada” na língua de sinais.
Para diminuir os impactos deste contexto, sugere-se investir na leitura da própria língua de sinais. Ler os sinais vai dar subsídios lingüísticos e cognitivos para ler a palavra escrita em português. As oportunidades que as crianças têm de expressar suas idéias, pensamentos e hipóteses sobre suas experiências com o mundo são fundamentais para o processo de aquisição da leitura e escrita da língua portuguesa. Pensando no contexto das crianças surdas, os professores devem ser especialistas na língua de sinais, além, é claro, de terem habilidades
de explorar a capacidade das crianças em relatar suas experiências. Este é um dos meios mais efetivos para o desenvolvimento da consciência sobre a língua.
Por exemplo, as crianças não precisam dizer que uma sentença com oração subordinada é uma sentença complexa de tal ou tal tipo, mas elas precisam ter milhares de oportunidades de usar tais sentenças, pois esse uso servirá de base para o reconhecimento da leitura e elaboração da escrita com significado. São as oportunidades intensas de expressão que sustentam o conhecimento gramatical da língua que dará suporte para o processo da leitura e escrita, em especial,da alfabetização na segunda língua, o português, considerando o contexto escolar
do aluno surdo.
Quando a criança já registra suas idéias, estórias e reflexões por meio de textos escritos, suas produções servem de base para reflexão sobre as descobertas do mundo e da própria língua. O professor precisa explorar ao máximo tais descobertas como instrumento de interações sociais e culturais entre colegas,turmas e outras pessoas envolvidas com a criança. O processo mais consciente da aquisição da leitura e escrita, isto é, a etapa mais meta-lingüística deste processo, é muito importante para o aluno surdo. Falar sobre a língua por meio da própria língua passa a ter uma representação social e cultural para a criança que são elementos importantes do processo educacional.Portanto, vamos conversar sobre “aprender a língua de sinais e a língua
portuguesa” usando e registrando as descobertas através destas línguas.
Aprender sobre a língua é uma conseqüência natural do processo de alfabetização.Os alunos passam a refletir sobre a língua, uma vez que textos podem expressar melhor ou pior a mesma informação. Ler e escrever em sinais e em português são processos complexos que envolvem uma série de tipos de competências e experiências de vida que as crianças trazem. As competências gramatical e comunicativa das crianças são elementos fundamentais para o desenvolvimento da leitura e escrita. Quando o leitor é capaz de reconhecer os níveis de interações comunicativas reais, ele passa a ter habilidades de transpor este conhecimento para a escrita. As crianças precisam internalizar os processos de interação entre quem escreve e quem lê para atribuir o verdadeiro significado à escrita. Falar sobre os processos de interações comunicativas, sobre a língua de sinais e sobre a língua portuguesa escrita são formas de desenvolver a conscientização do valor das línguas e suas respectivas complexidades. Este exercício dará subsídios para o processo de aquisição da leitura e escrita em sinais, bem como para o desenvolvimento da leitura e escrita do português como segunda língua. Os textos produzidos pelos alunos em sinais e literatura geral em sinais são fontes essenciais para o desenvolvimento desse processo, pois servem de referência para o registro escrito na língua portuguesa. Essas produções podem ser arquivadas por meio de uma videoteca, pois tal recurso é fundamental para avaliação das produções de outras pessoas, bem como das próprias produções. Esse processo de avaliação deve ser interacional, constante e criativo. Veja que
no caso do aluno surdo, a percepção da sua produção é diferente da percepção de uma criança que ouve e fala uma língua falada. O aluno surdo não tem a mesma percepção do que produz e do que vê ser produzido pelo seu interlocutor. Assim, ter a oportunidade de explorar a própria produção lendo a si próprio é fundamental para o desenvolvimento cognitivo que sustentará o processo de aquisição da leitura e escrita na língua portuguesa.
O ensino da língua de sinais é um processo de reflexão sobre a própria a língua que sustenta a passagem do processo de leitura e escrita elementar para um processo mais consciente. Esse processo dará sustentação para o ensino da língua portuguesa que pode estar acontecendo paralelamente. Quando a criança lida de forma mais consciente com a escrita, ela passa a ter poder sobre ela, desenvolvendo, portanto, competência crítica sobre o processo. A criança passa a construir e reconhecer o seu próprio processo, bem como, refletir sobre o processo do outro.


Texto extraído do livro “ Idéias para ensinar português aos alunos surdos” das autoras Ronice Muller e Magali schimiedt , MEC, SEESP 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário